Tudo
começa num bosque escuro, tenebroso, enfrento
dragões e serpentes, luto contra selvagens, salto
por cima de precipícios e nado contra a correnteza
de rios violentos. Finalmente, depois de
incontáveis aventuras, chego a uma caverna, driblo
aranhas gigantescas e alcanço o tão sonhado e suado
tesouro. Lá está ele, aquele baú enorme, daqueles de
filme. Vou até lá correndo, ali dentro pode estar
toda a solução para minha vida (pelo menos
financeira). Abro o baú e lá estão eles: os anéis
das latinhas! Milhares, milhões! “Estou rica! Estou
rica!”
Toca o despertador, acordo com a sensação de que
essa questão me persegue. Sim, amigos, um sonho. Os
primeiros sintomas de paranóia em alguém que recebe
centenas de e-mails de pessoas que já juntaram “uma
garrafa cheia de lacres” e querem “trocá-la” por RS
250,00. Na minha função de Coordenadora de
Comunicação, respondo os e-mails da forma mais
esclarecedora possível: “Caro Fulano, os anéis são
fabricados com o mesmo alumínio das latas e por isso
não têm valor diferenciado, etc, etc...”, já sabendo
que, ao ler a mensagem, a pessoa, desconfiada,
pensará: “Sei...” Mas, curiosa, começo a querer
entender o “fascínio” que essa pequena peça
provoca.
Você, como bom brasileiro que é, dirá: “coisa de
país do Terceiro Mundo.” Errado. Numa rápida
pesquisa na internet, descubro que o “mal” é
mundial. Em todos os lugares do planeta há pessoas
pensando que os lacres valem um bom dinheiro! Mas, é
claro, que em cada país há uma contextualização do
mito. Na Noruega, por exemplo, dizem que os lacres
são trocados por cachorro para cego. É óbvio que
aqui, nessa terra “cheia de palmeiras onde canta o
sabiá”, as chances de o cego não ser cego e do
cachorro virar churrasco são enormes! Mas voltemos
aos anéis...
Continuo minha pesquisa na internet e descubro que o
problema é mais grave do que imagino: vejo se
formando diante de meus olhos uma verdadeira rede de
intrigas e acusações. Ray Parson, de Ontário, diz
que a culpa é do McDonald´s, que, dizem, estaria
recebendo doações de lacres para sua instituição de
caridade. Suzanne Mills , de Washington D.C., se
apressa em afirmar que viu (e tocou!) na caixa onde
os lacres são colocados. Rick Myers, de Kansas City,
reclama: os alunos da escola onde trabalha juntaram
milhões de lacres que valeriam sessões de
hemodiálise para pessoas carentes e todo o esforço
foi em vão. Caroline Cromer, indignada, responde:
“Como, em vão?” E garante que ela, toda sua família,
amigos e alguns vizinhos fizeram (sim, todos eles!)
sessões de hemodiálise grátis, graças aos anéis!
(Será que entendi direito? Será que a Sra. Cromer
sabe o que é hemodiálise?). John Baumer, canadense,
quer “expandir” o assunto e diz que em seu trabalho,
as pessoas estão juntando o papel de uma certa marca
de bala: “Sabemos que é para algum tipo de
tratamento médico, mas não exatamente qual...” (ai,
ai, ai...). Bob Hiebert, intelectual (?!) de Nova
York, se diz decepcionado com a humanidade. “Num
momento em que todos os esforços deveriam estar
voltados para a recuperação do pensamento humanista
numa sociedade massacrada pelo consumo
desenfreado...” Chega! Não dá mais! Paro e penso:
“Devo prosseguir? Estarei me envolvendo em algo do
tipo “pague para entrar e reze para sair”?
Como minha pesquisa na internet traz mais dúvidas do
que esclarecimentos, decido ligar para o Galdeano.
“Fera” no assunto, quem sabe ele possa me fornecer
alguma informação técnica e preciosa sobre o tal
anelzinho. Galdeano rapidamente me envia as
informações necessárias. Eis o que ele me passou:
“Quando você retira o anel da lata, está
dificultando a sua reciclagem porque...
1- Devido ao tamanho reduzido, muitos deles
podem se perder antes de chegar ao local onde serão
reciclados.
2- No processo de reciclagem da lata, elas são
peneiradas e a chance de anéis soltos acabarem indo
junto com a areia/terra da limpeza é muito grande.
3- Aumentamos a chance de reduzir o rendimento
da reciclagem nos fornos, isso porque como a liga do
qual é feito o anel contém alto teor de magnésio e o
magnésio tem maior potencial de oxidação que o
alumínio, se ele (o anel) não estiver junto com a
lata, isso torna mais fácil sua oxidação no forno.
4- Pelo fato de a liga de alumínio que
reciclamos ser utilizada apenas para fazer o corpo
da lata e ter teor de magnésio menor que a dos
anéis, o uso apenas do anel no processo de
reciclagem pode contaminar o alumínio reciclado,
pois o teor de magnésio fica acima do desejado,
assim o material fica contaminado ou “fora das
especificações”.
5- Pelas razões acima, o alumínio dos anéis,
quando vendido separado, tem menor valor comercial
do que as latas inteiras, ou seja, vale menos!
(Pasmem)
6- Pior ainda que as razões acima, é a
frustração de ter tido o trabalho para ter a latinha
na mão, arrancar o anel, guardá-lo e depois
descobrir que ele não vale mais que a lata, ao
contrário, com muito menos latas você consegue a
mesma coisa. Se a intenção é ajudar alguém a ter uma
cadeira de rodas, saibam que juntando as latinhas
com anéis você precisará de 6.020 latas, mas para
conseguir a mesma cadeira de rodas só com anéis,
você vai precisar de 286.667 deles! Com 70 latas
você tem 1kg, para ter 1kg em anéis são necessários
3.333 anéis!!!”
Agora sim! São palavras de quem sabe! Com essa aula,
meus e-mails de resposta ganharão mais
credibilidade.
Depois de escrever essa “crônica”, me sinto mais
leve, parece que exorcizei o anelzinho e aceito o
fato de que as “lendas urbanas” fazem parte de
qualquer sociedade onde as pessoas precisem
acreditar em algo que de alguma forma melhorará suas
vidas, nem que seja apenas para sonhar. Nosso papel
é informar, esclarecer, deixar que as pessoas
sonhem, sim, mas com coisas que possam realizar.
Assim, peço a todos (agora que temos todas as
informações necessárias) que ajudem a divulgar “a
verdade” sobre os anéis das latas.
Chega a noite e meu sonho se repete. Enfrento os
mesmos dragões e serpentes, tudo acontece da mesma
forma que no sonho anterior, mas desta vez sei que o
tesouro é real, nada de anéis de latas, essa
paranóia está resolvida. Avisto de novo o tal baú.
Corro em direção a ele: feliz, leve, solta... Abro o
dito cujo e... nada, apenas um bilhete lá no fundo.
Pego o papelzinho e leio: “Vai trabalhar, Patricia!
Giosa.”
Tá bom, chefe...
Pensamento do dia: “Vão-se os anéis, mas ficam...
as latas.”
Desejo a todos uma boa tarde e uma ótima semana.
FONTE: Patricia Lattavo - www.latasa.com.br